Hoje observo e cuido dos objectos que vivem comigo.
Vejo-os como matéria orgânica, assim como o meu próprio corpo, que se corroem com o passar do tempo, à medida que os vou usando e das escolhas que vou fazendo.
Mas nem sempre foi assim. O acto de remendar algo, de estender a sua existência já gasta parecia para o meu eu adolescente um acto teimoso e antiquado. Não seria muito mais fácil repor algo antigo por algo fresco e intocado?
Ainda não via os objectos como uma extensão do meu corpo, não tinha a percepção da minha presença no mundo como uma relação reaccionária a tempo inteiro. Foi a minha avó quem me ensinou a remendar pela primeira vez e a partir daí comecei a ter especial atenção para a segunda vida que podemos dar a certas coisas.
Naturalmente, a manutenção dos objectos e dos lugares onde vivo repercutiu-se para os relacionamentos que tenho. Relacionamentos que também precisam de cuidado, que se gastam e enferrujam com o tempo. Também nas minhas relações com os outros criam-se buracos e arranhões, fios que se emaranham e cores que perdem a sua vivacidade. São gastos, que assim como com um objecto, precisam ser polidos e ajustados para voltarem a funcionar.
Quando me mostraste as imagens de uma tenda de feira, coberta de remendos, que te deparaste um dia por acaso, conversamos durante algumas horas sobre as diversas simbologias que víamos naquele objecto. Víamos em cada tentativa de reparação da tenda, um exemplo das conexões que criamos perante os outros e da manutenção que elas necessitam. Concordamos sobre como o acto de consertar algo não significa voltar atrás, mas sim a oportunidade de um novo começo.
Cada remendo presente na lona desta tenda, de um tamanho e formato único, demonstra uma cicatriz, que regista um dano passado. Marca uma vivência em transformação constante, que apenas continua através destes pequenos actos de manutenção, formando o que descreveste como uma «geografia de cuidado».
Nas imagens que me mostraste, os buracos ainda existentes na lona também estavam sinalizados, marcando a necessidade e vontade de consertá-los num futuro próximo. Este olhar atento e observador, de alguém que se importa com a preservação de algo ou alguém presente na sua vida é um olhar que ambas procuramos cultivar no nosso dia a dia.
A atenção às pequenas coisas e às suas reparações desenvolve não só as nossas relações mas também a nossa conexão temporal, reconhecendo um passado e preservando um presente de acordo com um futuro.