Não há medida para a leveza que resulta do processo de restituir
todos os fragmentos essenciais da delicada experiência do inevitável. É
um processo de “deixar acontecer”; de baixar os braços e aprender a
aceitar a realidade. É o olhar para um toque, para um sussurro, para um
traço: o vestígio que sobra de um encontro de dois corpos. O diálogo que se estabelece entre todas as imagens, sejam elas de maior
ou menor tangibilidade, é o da apreensão de um resquício – do jogo de
luz que estes minúsculos elementos apresentam com a sua envolvente, do
traço deixado pela presença de algo num determinado lugar. Quando se
considera o toque de dois corpos inconscientes considera-se então o
diálogo independente: a árvore que cai sem ser ouvida, a gota de água
que seca sem ser vista, a folha que mirra sem ser tocada. Diálogo este
que acontece, impassível ao espectador transeunte, e é apanhado in media
res.
Para a Rita, que entra como mediadora do contacto entre os elementos vestigiais, toca-lhe o trabalho de organizar e ordenar o caótico acaso natural, caminhando no limiar onde o evento casual toca o deliberado. A clara ligação que se manifesta entre a apreensão do traço e a activação da memória. A imagem apresenta-se como uma matriz que testemunhou o toque ocasional; A mão compactua com o processo de relembrar, reactivando o evento.
Há um foco potente no que toca à leitura do trabalho, que é notável pela organização e escrutínio pelo qual este passa. A mão que vem activar o evento de relembrar não trabalha de uma premissa fria e calculada, de uma observação analítica ou pragmática. Há uma sensibilidade emotiva a operar na decisão de reanimação, no processo de exaltação destes pequenos fenómenos. Não deixa, contudo, de haver uma ordenação calculada dos resultados. A leitura que tem do próprio trabalho é bastante aberta. A sua presença como uma observadora-curadora, que pretende garantir a segurança do momento; de garantir a sua importância. As mesmas lacunas propositais nas imagens que são apresentadas para a própria autora servem também para aliciar o espectador a procurar uma relação mais próxima com as peças que são produzidas. Os pequenos detalhes; a minúcia com que são capturados os momentos mais correctos.
É uma carta de amor à vida que não pretende de todo ocultar a ruína que vem com ela. O vestígio que se apresenta mais proeminentemente é justamente este vestígio da vida que passa indiferente a nós. A leitura que fazemos do mundo é a única coisa que tem qualquer tipo de influência na percepção que fazemos então destas imagens – destes fantasmas brilhantes que confortam e sublinham o aparente, o comum, o aparentemente comum, e o comummente transcendental com que tropeçamos diariamente. Olho para o passeio no caminho do autocarro e vejo uma flor que imediatamente guardo como imagem, mental ou fotográfica. Os meus olhos não sabem de que outra forma trabalhar esta comunicação entre o mundo que entra pelas minhas pupilas e a realidade objectiva; não há qualquer tipo de barreira que sirva para mediar esta invasão inevitável. Lembro-me imediatamente da Rita, e de como ela certamente tem já uma flor muitíssimo mais bonita e delicada cuidadosamente catalogada num herbário, juntamente com a folha da planta que a acompanha.
Para a Rita, que entra como mediadora do contacto entre os elementos vestigiais, toca-lhe o trabalho de organizar e ordenar o caótico acaso natural, caminhando no limiar onde o evento casual toca o deliberado. A clara ligação que se manifesta entre a apreensão do traço e a activação da memória. A imagem apresenta-se como uma matriz que testemunhou o toque ocasional; A mão compactua com o processo de relembrar, reactivando o evento.
Há um foco potente no que toca à leitura do trabalho, que é notável pela organização e escrutínio pelo qual este passa. A mão que vem activar o evento de relembrar não trabalha de uma premissa fria e calculada, de uma observação analítica ou pragmática. Há uma sensibilidade emotiva a operar na decisão de reanimação, no processo de exaltação destes pequenos fenómenos. Não deixa, contudo, de haver uma ordenação calculada dos resultados. A leitura que tem do próprio trabalho é bastante aberta. A sua presença como uma observadora-curadora, que pretende garantir a segurança do momento; de garantir a sua importância. As mesmas lacunas propositais nas imagens que são apresentadas para a própria autora servem também para aliciar o espectador a procurar uma relação mais próxima com as peças que são produzidas. Os pequenos detalhes; a minúcia com que são capturados os momentos mais correctos.
É uma carta de amor à vida que não pretende de todo ocultar a ruína que vem com ela. O vestígio que se apresenta mais proeminentemente é justamente este vestígio da vida que passa indiferente a nós. A leitura que fazemos do mundo é a única coisa que tem qualquer tipo de influência na percepção que fazemos então destas imagens – destes fantasmas brilhantes que confortam e sublinham o aparente, o comum, o aparentemente comum, e o comummente transcendental com que tropeçamos diariamente. Olho para o passeio no caminho do autocarro e vejo uma flor que imediatamente guardo como imagem, mental ou fotográfica. Os meus olhos não sabem de que outra forma trabalhar esta comunicação entre o mundo que entra pelas minhas pupilas e a realidade objectiva; não há qualquer tipo de barreira que sirva para mediar esta invasão inevitável. Lembro-me imediatamente da Rita, e de como ela certamente tem já uma flor muitíssimo mais bonita e delicada cuidadosamente catalogada num herbário, juntamente com a folha da planta que a acompanha.
A minúcia que me aproxima da flor no chão é a mesma minúcia que se
apresenta ao espectador; que convida a uma aproximação, a um maior
aprofundamento e experiência. Uma obrigação a testemunhar o simplíssimo,
o frágil. Coincidentemente não há muito de frágil no trabalho que nos é
apresentado enquanto espectadores. É uma inalterável realidade
fossilizada, que se desdobra em diferentes meios, ora mais ou menos
quebradiços, mas que nem por isso se manifesta como sendo frágil. A
experiência do sensível não é uma experiência do frágil.
Há qualquer coisa de cirúrgico na luz branca que banha todo o trabalho. Uma tentativa de esgotar qualquer segredo que se apresente nos materiais que são lavados por esta enchente brilhante. Luz. Impressões que são feitas pela luz. No trabalho da Rita tudo é luz, é o veículo que a imagem encontra para se apresentar, e talvez seja por isso que haja uma tão forte presença da luz no seu trabalho: há um fortíssimo desejo de tornar imensamente claro o contacto que aconteceu. A necessidade emotiva e sensorial de iluminar o sujeito, para que se tornem óbvios todos os aspectos visuais que por sua vez carregam já em si a luz. A luz não é apenas um elemento que ilumina; é também, muitas vezes, um elemento que pertence à imagem que é preparada para o espectador, é um dos elementos que faz contacto no trabalho e que faz com que haja sequer uma pretensa a ser explorada. Surge como um guia divino. Há algo incrivelmente espiritual – não religioso – nas imagens que são apresentadas. Não religioso porque não há qualquer necessidade de devoção, não há particularmente qualquer sentido de admoestação a ser prestado perante estas imagens, mas há na mesma um sentido de encontrar um uno, de encontrar a aparente união sagrada que é feita nas imagens. Alguma coisa murmurou sobre este suporte que agora murmura ao espectador. Há realmente algo de imensamente espiritual a ser observado no processo que a Rita aplica nestas imagens, nestes elementos do herbário, e em tudo o que toca com a maior atenção: há uma exaltação das mais pequenas demonstrações da vida quando em contacto com algumas das maiores - os estames de flores que são celestialmente envoltos em luz solar.
A fluidez com que o trabalho é feito, é também parte importante deste processo de entendimento da experiência do sensível. O acaso é desejado e, em certa medida, deixa de ser acaso. Há uma intenção muito clara em deixar que as coisas simplesmente aconteçam na medida em que tenham de acontecer. Os quimigramas ou as pinturas a óleo vivem justamente desta intervenção por parte da Rita no processo de “iniciar” o acaso. O que acontece neste jogo de reacções entre os diferentes materiais, e as diferentes formas, cores, elementos, está fora do alcance e do controlo da autora. O trabalho que se segue é apenas o de moderação dos resultados, de interpretação dos sinais, de apreensão dos traços. O inesperado não precisa de ser domado. Só precisa de ser cuidadosamente estudado e catalogado. Como as pessoas que nos rodeiam, o mundo à nossa volta também está vivo, em constante movimento, em perpétuo tumulto. Pode não haver medida para a experiência do inevitável, mas há certamente a possibilidade de fazer com que a mesma não passe despercebida. Encontro num caderno meu uma anotação que tomei de um livro de artista que a Rita me apresentou há algum tempo. Nas suas palavras: «onde há luz, eu corro atrás».
Há qualquer coisa de cirúrgico na luz branca que banha todo o trabalho. Uma tentativa de esgotar qualquer segredo que se apresente nos materiais que são lavados por esta enchente brilhante. Luz. Impressões que são feitas pela luz. No trabalho da Rita tudo é luz, é o veículo que a imagem encontra para se apresentar, e talvez seja por isso que haja uma tão forte presença da luz no seu trabalho: há um fortíssimo desejo de tornar imensamente claro o contacto que aconteceu. A necessidade emotiva e sensorial de iluminar o sujeito, para que se tornem óbvios todos os aspectos visuais que por sua vez carregam já em si a luz. A luz não é apenas um elemento que ilumina; é também, muitas vezes, um elemento que pertence à imagem que é preparada para o espectador, é um dos elementos que faz contacto no trabalho e que faz com que haja sequer uma pretensa a ser explorada. Surge como um guia divino. Há algo incrivelmente espiritual – não religioso – nas imagens que são apresentadas. Não religioso porque não há qualquer necessidade de devoção, não há particularmente qualquer sentido de admoestação a ser prestado perante estas imagens, mas há na mesma um sentido de encontrar um uno, de encontrar a aparente união sagrada que é feita nas imagens. Alguma coisa murmurou sobre este suporte que agora murmura ao espectador. Há realmente algo de imensamente espiritual a ser observado no processo que a Rita aplica nestas imagens, nestes elementos do herbário, e em tudo o que toca com a maior atenção: há uma exaltação das mais pequenas demonstrações da vida quando em contacto com algumas das maiores - os estames de flores que são celestialmente envoltos em luz solar.
A fluidez com que o trabalho é feito, é também parte importante deste processo de entendimento da experiência do sensível. O acaso é desejado e, em certa medida, deixa de ser acaso. Há uma intenção muito clara em deixar que as coisas simplesmente aconteçam na medida em que tenham de acontecer. Os quimigramas ou as pinturas a óleo vivem justamente desta intervenção por parte da Rita no processo de “iniciar” o acaso. O que acontece neste jogo de reacções entre os diferentes materiais, e as diferentes formas, cores, elementos, está fora do alcance e do controlo da autora. O trabalho que se segue é apenas o de moderação dos resultados, de interpretação dos sinais, de apreensão dos traços. O inesperado não precisa de ser domado. Só precisa de ser cuidadosamente estudado e catalogado. Como as pessoas que nos rodeiam, o mundo à nossa volta também está vivo, em constante movimento, em perpétuo tumulto. Pode não haver medida para a experiência do inevitável, mas há certamente a possibilidade de fazer com que a mesma não passe despercebida. Encontro num caderno meu uma anotação que tomei de um livro de artista que a Rita me apresentou há algum tempo. Nas suas palavras: «onde há luz, eu corro atrás».
Texto do Nuno Ferreira para o Primeiro Fascículo do Paralaxe.